Em Novembro de 1993, os Nirvana deram o concerto que se tornou o seu elogio fúnebre, Unplugged In New York. Cinco meses depois, já não existiam na cabeça de Kurt Cobain, à deriva por Seattle. A 5 de Abril de 1994, muito antes da partida de Layne Staley e Chris Cornell, Cobain juntava-se ao trágico panteão de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison. Reconstituem-se aqui os seus derradeiros passos...
18 de Novembro de 1993. Os Nirvana preparavam um concerto diferente. Guitarras eléctricas dão lugar às acústicas, Dave Grohl de rabo de cavalo e gola alta e Kurt Cobain de casaco de malha e calças de ganga rasgadas. Kris Novoselic muito alto, mesmo sentado num banco, e o já quase veterano Pat Smear (guitarrista dos Germs e futuro membro dos Foo Fighters), descalço, tentando integrar-se numa banda em desagregação.
Kurt não queria aquele concerto. De resto, desde o início da digressão americana de In Utero, um mês antes, não quisera nenhum deles. Apenas a carreira comercial pouco satisfatória do disco (os lucros perdidos em vendas tinham que se ser recuperados) e a pressão dos restantes membros da banda, do management e de Courtney Love, o haviam forçado a fazê-lo.
Ainda assim, isto era diferente. Um concerto intimista serviria como escape da loucura das actuações em estádio. Um concerto naquele formato permitir-lhe-ia até fugir um pouco dos Nirvana, que eram a sua banda, que eram banda que começava a considerar insuportável. Certo que era para a MTV, alvo constante do seu sarcasmo, mas ele era Kurt Cobain e, desta vez, poderia utilizar em seu favor o estatuto de estrela rock. Por isso foram aceites os Meat Puppets como convidados a produção preferia alguém de renome da cena «grunge» e um alinhamento onde não figuravam muitos dos singles, substituidos por versões de músicos que Kurt Cobain admirava David Bowie, Leadbelly, Vaselines e os próprios Meat Puppets.
O concerto, todos sabemos, pertencia à série Unplugged da MTV e tornou-se parte da iconografia dos Nirvana. Para muitos, tornou-se a principal imagem que deles se reteve, a de Kurt Cobain como figura trágica e indecifrável. Alheado e distante no intervalo entre canções, quase figura ausente, era se como apenas nelas vivesse realmente tal imagem, contudo, é inevitavelmente marcada pelo futuro que conheceríamos meses depois.
Durante a preparação do espectáculo, quando lhe perguntaram o que desejava como cenário de palco, Kurt pediu velas e lírios brancos. «Como num funeral?», ripostaram. «Exactamente». Fora do seu círculo mais próximo, tal resposta não era mais que demonstração do humor negro que o público reconhecia das entrevistas e aparições públicas. Visto de fora, tudo continuava como sempre no mundo dos Nirvana.
Dois meses depois, Cobain e Love trocam a vida nómada de hotel em hotel por uma casa, a primeira que compram enquanto casal. Localizada no bairro de Denny-Blaine, em Seattle, é uma imensa mansão de início de século XX, com 15 quartos e o lago Washington nas proximidades. A ausência quase total de mobília num espaço tão vasto empresta-lhe uma aura fantasmagórica. O desconforto é acentuado pela decisão de decorar a sala com uma réplica de cera, em tamanho real, de Lizzie Borden, mulher que figura na cultura popular americana desde a segunda metade do século XIX, quando a acusação de assassinato de pai e madrasta a golpes de machado a torna um dos casos mais mediáticos da sua época. Mais uma vez, Kurt Cobain manifesta o seu interesse por figuras mórbidas do imaginário americano. Mal acabada a mudança, esgota-se o tempo para mais decorações. Espera-o aquilo que, na altura, Kurt encarava como um suplício.
Mais concertos: a componente europeia da digressão de In Utero. O consumo de heroína, pautado por uma série de mal sucedidas tentativas de desintoxicação, é um problema latente. Ainda assim, aparece com bom ar a David Fricke, histórico jornalista da Rolling Stone. Numa entrevista em Janeiro de 1994, conta-lhe que o seu estomâgo serenou. Já não sente as dores crónicas que o acompanharam nos cinco anos anteriores, essas que responsabiliza pela sua toxidependência só a heroína, dissera, apazigua aquele sofrimento insuportável. Candidamente, conta à Rolling Stone que no dia anterior à entrevista, e pela primeira vez em muito tempo, disfrutou de uma pizza sem efeitos secundários.
«Ausente» em Portugal, «morto» em Roma
Ao início da tarde, já longas filas se estendem desde as portas de entrada. Miúdos de t-shirt preta com Nirvana estampado a branco. Punks saídos de 1977 e raparigas de ténis all-star, calças justas e mochila às costas. Surfistas de cabelo louro, devidamente oxigenado, e grungers de garrafa de cerveja na mão e a indispensável camisa de flanela.
6 de Fevereiro de 1994. Dia do primeiro concerto da digressão europeia dos Nirvana. No Pavilhão Dramático de Cascais, o público da plateia passa o tempo a reclamar com o das bancadas acusam-no de demasiado «betinho» e medroso por não arriscar estar onde a acção, leia-se «moshpit », se irá desenrolar. Os Buzzcocks, convidados especiais da digressão, passam pelo palco com uma camisola da selecção portuguesa e tocam clássicos que poucos reconhecem. Podem ser uma banda histórica, mas não são ali a história que interessa.
Kurt Cobain do lado esquerdo do palco, Kris Novoselic ao centro, Pat Smear à direita e Dave Grohl elevado num estrado sobre todos eles. Descarga sónica violenta em «Radio Friendly Unit Shifter», a primeira canção. Mais tarde, «Smells Like Teen Spirit», discussão recorrente durante as horas de espera (tocarão a canção proscrita?), aparece para delírio da multidão e «Bogeyman», aproximação à folk em que Novoselic troca o baixo por uma sanfona, surge como amostra de um futuro que não chega a existir. Para o público, é um acontecimento -ver as bandas certas no momento certo é uma raridade em Portugal. Para Kurt Cobain, apenas mais um concerto de uma digressão que não deseja.
Acrescenta: «Não me importo que me façam essa pergunta [sobre drogas]. Mas toda a gente sabe que o Kurt experimentou heroína depois parou e as pessoas gostam de ampliar essas notícias, de fazer perguntas acerca do estado actual do Kurt e da Courtney, quando eles só querem ter uma vida normal».
Enquanto Kurt falha sucessivamente as hipóteses de desintoxicação e se fecha cada vez mais num casulo de depressão, aqueles que lhe são mais próximos tentam blindá-lo à especulação mediática. Kurt e Courtney não podem ter uma vida normal.
O último concerto dos Nirvana acontece em Munique, dia 1 de Março. No final de um actuação desastrosa, as datas seguintes são adiadas para Abril. A Cobain, que perde a voz durante o concerto, são diagnosticadas laringite e bronquite agudas. Nessa mesma noite, telefona ao primo Art Cobain, de 52 anos. Não se falam há muito. Cobain diz-lhe que irá abandonar os Nirvana e a indústria musical. Art convida-o para uma reunião marcada para o Verão seguinte.
Dois dias mais tarde, encontramo-lo num hotel de luxo em Roma, o Excelsior. Courtney e Frances Bean chegam no dia seguinte. Nessa mesma noite, um funcionário do hotel é destacado para adquirir Rohypnol na farmácia mais próxima comummente usada para tratar insónias, o fármaco serve como substituto da metadona durante ressacas de heroína. Juntamente com o Rohypnol, Kurt encomenda duas garrafas de champanhe. Considerando que praticamente não bebia álcool, parecia querer assinalar um momento especial.
Na manhã seguinte, Courtney encontra o marido no chão, inconsciente. No seu estomâgo, acumulam-se cerca de cinquenta comprimidos. Por perto, um bilhete: «Como Hamlet, escolho entre a vida e a morte. Estou a escolher a morte». Falhou. Transportado em coma para o hospital, acorda vinte e cinco horas depois. Nesse intervalo, o canal televisivo CNN transmite o seu obituário e Kris Novoselic é informado pela editora da morte do companheiro de banda.
Desfeito o equívoco, a tentativa de suicídio passa a ser, na versão oficial, um trágico acidente. Num extenso artigo da Rolling Stone de Junho de 1994, onde se reconstituem os últimos meses da vida de Kurt Cobain, Lee Ranaldo, guitarrista dos Sonic Youth e amigo próximo, recorda o incidente como «o último episódio na criação de uma fachada de normalidade por parte daqueles que o rodeavam». A partir daquele momento, Cobain está em queda livre.
A garagem da casa onde o corpo de Kurt Cobain foi encontrado a 8 de abril de 1994
O clube dos 27
De volta a Seattle, o caos adensa-se. Courtney impede-o de injectar heroína em casa e Kurt muda-se para um motel barato a heroína vende-se ao balcão. Dia 18 de Março, a polícia é chamada à mansão de Denny-Blaine.
Cobain trancara-se num quarto com um revólver a ameaça suicidar-se. Depois de lhe serem confiscadas três armas, 25 caixas de munições e uma de comprimidos, abandona a casa. Uma semana depois, o mesmo cenário é palco de uma derradeira tentativa de recuperação.
Kris Novoselic, Pat Smear, Courtney Love e Dylan Carlson, o melhor amigo de Kurt. Um ultimato. Caso se recuse a uma desintoxicação definitiva, Courtney Love irá abandoná-lo e Kris acaba com os Nirvana. Nessa noite, Cobain acede. Na manhã seguinte, recusa entrar no avião com direcção a Los Angeles. Cinco dias mais tarde, reconsidera. Está pronto para partir.
Antes disso, pede a Carlson que o acompanhe na compra de uma arma. Justifica a decisão com o receio de que estranhos lhe invadam a propriedade. Recusa deixar o revólver ao cuidade do amigo. Guarda-o em casa. Então sim, parte para o Exodus, em Los Angeles, clínica famosa pela sua mediática clientela.
Um dos amigos que o visita durante a estadia é Gibby Haynes, tresloucado vocalista dos Butthole Surfers. Kurt Cobain passa dois dias no Exodus. Ao fim da tarde do segundo, salta o muro. Uma excentricidade. Dado que o estabelecimento não funciona em regime fechado, Kurt poderia ter atravessado calmamente o portão principal.
Nessa mesma noite, está de volta a Seattle. Numa bizarra coincidência, encontra como companheiro de voo Duff McKagan, que tenta também superar a dependência de heroína. Segundo o baixista dos Guns N' Roses, a viagem é um típico encontro entre toxicodependentes: dar um chuto e dizer que é o último.
Incontactável e sem qualquer vontade de informar do seu paradeiro, Kurt passa os dias vagueando por Seattle. Para o management dos Nirvana, enlouqueceu. A editora considera estar perante um grave momento de crise. Os amigos, por sua vez, desesperam.
Mark Lanegan, vocalista dos Screaming Trees, pressente que algo de terrível se aproxima e procura-o sem sucesso. Enquanto isso, Kurt Cobain divide-se entre um quarto de motel decadente, onde se regista sob o nome Bill Bailey (o nome verdadeiro de Axl Rose), e casas de amigos toxicodepentes. Estes, ao constatarem as doses proibitivas que injecta, expulsam-no com receio que sofra uma overdose às suas mãos.
A 4 de Abril, segundo refere uma investigação de 2006 do diário britânico The Guardian, Kurt quebra a rotina com uma ida ao cinema O Piano foi o filme escolhido. Na tarde do dia seguinte, em casa, barrica-se num quarto secreto, localizado sobre a garagem. Prepara mais um chuto, pega numa caneta e, a tinta vermelha, escreve uma carta dirigida a Boddah, o seu amigo imaginário na infância.
Na missiva, queixa-se de há muito não sentir entusiasmo «em ouvir e criar música, bem como em ler e escrever». «Sinto-me culpado para além do que as palavras possam exprimir». Fala de Courtney como «uma deusa» que «respira ambição e empatia» e de Frances Bean como a filha que o lembra demasiado aquilo que fora: «Sempre cheia de amor e felicidade, beijando todas as pessoas que conhece porque todos são bons e não irão magoála ». Despede-se: «Já não sinto paixão (.). É melhor apagar de uma vez que desaparecer aos poucos». Atira a carteira aberta ao chão e, sentado numa cadeira encostada à janela, dá mais um chuto. Pega na arma essa que escondeu antes de partir para dois dias no Exodus e puxa o gatilho.
Três dias passaram até ser encontrado por um electricista, contratado para instalar luzes de alarme. A polícia nunca chegou a entrar na casa, limitando-se a questionar os vizinhos. Tom Grant, o detective privado contratado por Courtney Love, aterra em Seattle a 6 de Abril, um dia após o suicídio. Desconhecendo o quarto secreto sobre a garagem, as suas buscas são infrutíferas.
No momento em que se juntou a Jimi Hendrix, Janis Joplin ou Jim Morrison nesse trágico panteão das estrelas rock desaparecidas aos 27 anos, tinha a televisão ligada na MTV, em silêncio. Na aparelhagem, o CD de Automatic For The People, álbum dos R.E.M. editado em 1992.
Meses antes, confessara que Michael Stipe era o único músico com quem desejava trabalhar. Este chegou a enviar-lhe um bilhete de avião para que se reunissem e arrancassem com a colaboração. Kurt nunca apanhou o voo. É que poderia ser uma forma de desaparecer lentamente. E Kurt Cobain tinha pressa.
Texto: Mário Lopes, Originalmente publicado na BLITZ de janeiro de 2009
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