“The Raincoats”, álbum de estreia de 1979 do quarteto liderado pela portuguesa Ana da Silva, continua a fazer correr tinta quase quatro décadas depois. Um novo livro a ele dedicado foi o pretexto para um encontro em Lisboa com a vocalista e guitarrista, que recordou o dia em que um fã chamado Kurt Cobain lhe bateu à porta da loja onde trabalhava
Num manifesto escrito para um panfleto autopublicado em 1980, Ana da Silva defendia que era «importante tentar evitar ao máximo entrar nos jogos que nos são propostos». A guitarrista e vocalista das Raincoats referia-se às armadilhas impostas pela condição feminina numa era em que Margaret Thatcher tinha acabado de chegar ao poder com a força de uma dama de ferro, disposta a não permitir que o facto de ser mulher a amaciasse na condução do país. «Ser mulher», argumentava Ana da Silva, «é tanto sentir no feminino e expressar no feminino quanto (pelo menos para já) reagir contra o que se diz que uma mulher deve ser. Esta contradição cria caos nas nossas vidas e se queremos ser reais, temos que descurar o que nos foi imposto, temos que criar as nossas vidas de uma nova maneira».
Simon Reynolds, nas páginas de Rip It Up and Start Again, o mural definitivo do pós-punk (ed. Penguin, 2005), explica que «a forma encontrada pelas Raincoats para ultrapassar a pressão de serem femininas passou por terem uma aparência vulgar, adotando um visual desmazelado que passaria despercebido em qualquer banda masculina da mesma época. Mas tal gesto vindo de mulheres, no entanto, assumia uma dimensão radical, uma estridente recusa do glamour». Essa «estridência» rendeu quatro álbuns editados entre 1979 e 1996, incluindo o homónimo registo de estreia que acaba de merecer honras de atenção na aplaudida série de livros da Bloomsbury 33 1/3 (que já conta mais de 120 volumes, cada um deles dedicado a um álbum clássico, cobrindo obras de artistas como Björk, Arcade Fire, Brian Eno, The Beatles, David Bowie, Prince, Talking Heads ou LCD Soundsystem). O livro dedicado a The Raincoats é assinado pela jornalista norte-americana Jenn Pelly (colaboradora de publicações como a Rolling Stone ou o New York Times), que começa por se questionar sobre «quem é que fica para a história e porquê?», antes de se atirar à fascinante saga de quatro mulheres que criaram uma obra de tal força que um dia – já os anos 90 iam lançados e as Raincoats acreditavam serem elas mesmas coisa do passado – um rapaz louro foi ter com Ana da Silva à loja de antiguidades em que trabalhava, na zona de Notting Hill: «na altura», explica-nos agora a guitarrista, «eu não fazia ideia de quem era o Kurt Cobain ou os Nirvana. Vivia noutro mundo, nunca tinha ouvido falar neles...».
(Ana da Silva em 1978
SHIRLEY O'LOUGHLIN
DA MADEIRA PARA LONDRES)
Ana da Silva recorda as estórias de que se faz a história das Raincoats sentada numa esplanada da zona do Chiado, em Lisboa, onde costuma passar férias vinda de Londres, cidade que adotou como sua há mais de 40 anos. Natural da Madeira, Ana visitou Inglaterra pela primeira vez quando contava 16 anos, com a sua irmã mais velha: «Foi na altura dos Beatles, que ainda só tinham três álbuns, e os Rolling Stones só tinham um. E nós comprámos esses álbuns todos e fomos ver os Rolling Stones e outras bandas como os Dave Clark Five e assim, coisas da época. Vimos o filme A Hard Day’s Night e achámos tudo fantástico».
Em 1964, ainda a uma década da revolução, sair de Portugal e aterrar em Londres equivalia, muito literalmente, a abrir os olhos – e os ouvidos! – a um admirável mundo novo. E mesmo a mais de cinco décadas de distância, Ana da Silva continua a carregar na voz o entusiasmo da descoberta quando recorda esses episódios. Um par de anos mais tarde, Lisboa foi o passo seguinte na sua aventura: foi na capital que se estabeleceu para «estudar Germânicas»: «havia o Em Órbita e eu ouvia muito esse programa, era fantástico porque lá na Madeira a rádio era uma coisa horrorosa», recorda, referindo-se ao mítico programa do Rádio Clube Português produzido e realizado por Jorge Gil e Pedro Soares Albergaria, que contava com apresentação de Cândido Mota. «Ele tocava sempre dois álbuns alternadamente. E eu gravava tudo e depois ouvia», rememora.
A paixão de Ana da Silva pela música, no entanto, não se traduzia necessariamente nalguma educação musical formal: «eu tocava um bocadinho de piano. A minha mãe mandou-nos aprender piano quando éramos miúdas, mas eu não tinha assim tanto interesse nisso. Quando vim para a faculdade, a minha irmã comprou-me uma guitarra acústica e comecei a dar uns toques». Na verdade, admite Ana, nada de verdadeiramente consequente. A inclinação musical a sério só se revelaria mais tarde, em Londres, para onde foi, no final de 1974: «tive um bocado de pena porque tinha havido o 25 de Abril e as portas estavam todas muito mais abertas, mas, na verdade, eu nem tinha planeado mudar-me para Inglaterra».
A futura cantora e guitarrista foi inicialmente de férias, mas depressa arranjou trabalho junto de amigos expatriados por causa da ditadura. «Resolvi estudar Artes porque foi uma coisa de que sempre gostei». E em Inglaterra, já se sabe, as escolas de artes foram um importante campo de recrutamento para as fileiras do punk. «Já nos anos 60 havia muitas bandas como os Kinks, que tinham elementos vindos de escolas de artes», justifica. Com o entusiasmo punk a varrer os corredores das escolas que mais cultivavam a urgência da expressão, não demorou até que Ana da Silva se cruzasse com alguém com as mesmas afinidades e vontades: «conheci a Gina [Birch] e, ao fim de mais ou menos um ano, resolvemos começar uma banda».
Gina Birch veio de Nottingham para o Hornsey College of Art e aterrou em Londres no preciso momento em que o punk inflamava a cidade. Para a futura baixista das Raincoats ver as Slits ao vivo foi quanto bastou para que decidisse formar uma banda: «fiquei absolutamente doente de inveja», contou Birch a Simon Reynolds. «Mas era daquela inveja motivadora. Ver tantas bandas que não sabiam tocar muito bem foi uma inspiração. Porque eu tocava um bocadinho guitarra, mas não era um ás. Bem, na verdade continuo a não ser, mas tenho a minha linguagem», explica agora Ana da Silva, por entre risos. «Ver a Patti Smith foi uma coisa que mudou a minha vida, mas eu achava-a tão fantástica que nunca pensei que podia fazer a mesma coisa, claro. Mas vendo as Slits – que eram pessoas que viviam ali ao pé e que eu conhecia – convenci-me do contrário», conta-nos Ana da Silva. Ainda por cima, os fanzines encorajavam toda a gente a pegar em instrumentos: «havia um que se chamava White Stuff que dizia que só era necessário saber três acordes e até publicou um desenho a ensinar esses três acordes. E eu até sabia mais do que três, sabia para aí uns quatro ou cinco». (risos)
Nesses dias sem futuro, a fundadora das Raincoats viu os Sex Pistols «antes de serem famosos e com 20 ou 30 pessoas no público» e os Clash, «mais do que uma vez». E cada concerto servia como mais um passo na direção da sua própria banda, ainda que o presente fosse o mais importante dos tempos: «quando comecei, nem pensei assim muito para a frente. Começámos uma banda e acho que não pensei “vou para o palco e vou fazer discos”. Nada disso. Começámos ali a tocar na minha salinha com dois amplificadores pequenos, daqueles que nem dava para tocarmos ao vivo. As duas guitarras, o baixo e as vozes passavam por esses dois amplificadores, não tínhamos mais nada. O baterista não precisava – tocava muito alto».
Antes de se cristalizarem como uma banda só de mulheres, as Raincoats de Ana da Silva e Gina Birch ainda contaram com os préstimos de alguns homens: no primeiro concerto de sempre, em novembro de 1977, Ross Crighton tocou guitarra e Nick Turner assumiu a bateria. Turner sairia pouco depois para formar os Barracudas, sendo substituído de forma fugaz por Richard Dudanski que vinha dos 101ers (a banda de Joe Strummer pré-Clash) e que haveria de integrar os PiL (a banda de Johnny Lydon pós-Pistols). Houve igualmente uma sucessão de guitarristas, incluindo o futuro cineasta Patrick Keiller. Na reta final de 1978, no entanto, a banda assumiu a sua formação clássica com a entrada de Palmolive, a baterista que tinha abandonado as Slits, e da violinista Vicky Aspinall. Esta formação – já sob a condução da manager Shirley O’Loughlin, que se mantém ao serviço das Raincoats até hoje – estreou-se em palco no Acklam Hall de Londres a 4 de janeiro de 1979, antes de embarcar numa digressão conjunta com as suíças Kleenex, já com o single de estreia lançado pela Rough Trade. No NME, Ian Penman reportou a estreia para a posteridade: «foi uma noite de comédia, paródia, muita calma contracorrente, diversão, rock radical e feminismo pop a rodos». O crítico concluía depois: «não me consigo lembrar de nada das Raincoats porque fui hipnotizado». Mick Jones, dos Clash, membros das Slits e dos Scritti Politti e gente da Rough Trade marcaram presença nesse concerto.
«Como eu trabalhava na loja», conta-nos Ana da Silva, «convidei o Geoff para ir ver um concerto e tudo aconteceu muito depressa. Usámos um tempo de estúdio que tinha sido reservado para os Stiff Little Fingers para fazermos a maqueta do “Fairytale in the Supermarket” e depois a Rough Trade meteu aquilo na rua muito rapidamente. Tínhamos acabado a tournée e praticamente gravámos ao vivo». O single de estreia das Raincoats foi lançado em abril de 1979 e foi a décima terceira entrada num catálogo que já incluía Kleenex, Cabaret Voltaire, Stiff Little Fingers, Subway Sect e Swell Maps, entre outros.
Geoff Travis, fundador da Rough Trade (que se mantém na liderança da marca – lojas, edição e distribuição) recorda-nos, hoje, como tudo aconteceu: «apaixonámo-nos todos pelo que as Raincoats estavam a fazer: a chinfrineira maluca, as canções, o nervo desavergonhado destas mulheres... Elas tiveram um efeito galvanizador em muitas outras mulheres que as viram e que perceberam que elas não precisavam de autorização de ninguém no mundo masculino para mostrarem as suas ideias e as suas paixões. Era algo muito punk, a ideia de que qualquer um poderia subir a um palco e fazer alguma coisa. Elas fizeram isso muito bem»
A lista dos 50 discos preferidos de Kurt Cobain, dos Nirvana. "The Raincoats" está na terceira coluna
UM RAPAZ CHAMADO KURT
O single «Fairytale in the Supermarket» – que Jenn Pelly descreve como «arte pop em miniatura» – foi coescrito por Ana da Silva após ter visto o documentário Who Is Poly Styrene na BBC, em janeiro de 1979, apenas dois meses após a edição de Germfree Adolescents, o clássico punk dos X-Ray Spex. Numa das cenas do documentário, a vocalista da banda é filmada num supermercado: «lembro-me claramente de a música dela me soar a contos de fadas, mas numa sociedade de consumo», contou Ana da Silva à autora do livro da série 33 1/3 dedicado ao primeiro álbum das Raincoats. «De repente ocorreu-me: “é como um conto de fadas no supermercado”».
Os aplausos da imprensa foram imediatos. E surpreendentes para a banda, ainda não plenamente convencida de que a sua inépcia podia ser entendida como marca de estilo: “o facto de termos começado a banda foi uma surpresa, o facto de termos feito uma música foi uma surpresa. A primeira música que fizemos parecia uma coisa feita por outras pessoas porque eu nunca tinha feito nada assim. Tinha tocado viola acústica ou mesmo elétrica em casa sozinha, mas não é a mesma coisa que ter aquele som que têm as partes todas, com a letra e tudo o mais. A primeira letra nem fui eu que a escrevi; eu nem sabia que ia escrever letras. Nunca tinha tido aquela coisa de escrever poesia nem nada disso. Como não tínhamos canções, vim a Portugal de férias e comecei a escrever umas músicas, a “Black and White”, “The Void”... Duas ou três escrevi no Porto Santo e depois as outras fui fazendo conforme fomos precisando de canções. Eu também não ia ser a cantora, achava que íamos arranjar uma».
«O álbum de estreia das Raincoats», alertam Simon Reynolds e Joy Press em The Sex Revolts (Serpent’s Tail, 1995), «torce e espreme o formato rock, mas não o quebra». «O álbum», contrapõe Ana da Silva, «foi fantástico porque foi um cimentar da coisa, da nossa existência». Geoff Travis tem elogios igualmente rasgados: «o álbum delas é único porque é a soma de todos os elementos do grupo, uma colisão de diferentes educações e culturas que se encontram num caleidoscópio feminista de música maravilhosa». John Lydon, em 1980, garantia à Trouser Press que os Pistols tinham dado a machadada final no rock and roll: «o rock and roll é uma merda. Os avós dançaram-no. Já não me interessa... exceto as Raincoats».
Lydon não foi o único fã notável. Anos mais tarde, outro admirador famoso, Kurt Cobain, forçou a saída das Raincoats das amarras da memória de uns quantos iluminados que as tinham preservado. Nas notas de capa de Incesticide, dos Nirvana, aquele que era então o maior símbolo rock da sua geração contava a história de uma peregrinação a Portobello Road em busca de uma cópia do álbum de estreia das Raincoats.
«Ele foi à loja da Rough Trade porque tinha um disco que já estava gasto e queria ter uma cópia nova, mas eu não sabia quem ele era», confessa Ana da Silva. «Estava com a mulher – a Courtney Love – que estava grávida, e vieram lá dentro [à loja de antiguidades onde Ana trabalhava], mas eu estava com outro cliente, de maneira que não pude estar muito tempo à conversa com eles. Perguntou se eu tinha uma cópia do álbum, eu disse que ia ver, mas não liguei muito. Percebi depois que não tinha, mas falei com alguém na Rough Trade que tinha dois exemplares e me ofereceu um. Preparei um envelope, colei dentro umas fotografias e umas palavras, assinei-o – tal como as outras pessoas da banda – e enviei-lho».
Nas notas de Incesticide, o vocalista dos Nirvana dá conta da alegria que sentiu quando recebeu o seu exemplar de The Raincoats: «essa escritura maravilhosamente clássica», afiançava Kurt. Receber a carta de Ana da Silva, garantiu o músico de Seattle, deixou-o «mais feliz do que tocar em frente de milhares de pessoas todas as noites». «Foi uma das poucas coisas realmente importantes com que fui abençoado desde que me tornei neste intocável menino-génio», acrescentou.
Na altura, Ana admite que estava muito desligada da música. «Ia de vez em quando à Rough Trade, mas não sabia dos Sonic Youth [a baixista Kim Gordon também era fã], nem nada. Comecei a ouvir outras coisas diferentes. Entretanto, comprei o disco dos Nirvana e gostei muito, achei fantástico. Enviei-lhe o nosso álbum e aí é que ele escreveu aquela coisa toda que está em todo lado (risos)». «Outra surpresa foi que aquelas bandas todas da cena riot grrrl citavam-nos como uma influência e inspiração. Eu julgava que os nossos discos estavam a criar pó».
O livro sobre "The Raincoats", lançado em outubro de 2017
Na época, a Rough Trade aproveitou a adoração professada por Kurt Cobain para reeditar os álbuns das Raincoats que não tardaram a voltar à estrada (chegaram a fazer alguns concertos com Steve Shelley, dos Sonic Youth, na bateria). A 6 de abril de 1994, as Raincoats tocaram na WFMU de Nova Jérsia, uma das mais respeitadas rádios independentes dos Estados Unidos. A entrevista que se seguiu serviu para apresentar a digressão de sete datas que deveriam iniciar em Inglaterra na semana seguinte, mas Cobain tinha-se suicidado na noite anterior, o que se saberia dois dias mais tarde.
A notícia «fatal» chegou-lhes ainda na América: «na altura não havia telemóveis, não tínhamos rádio ligado e chegámos à noite a Nova Iorque para tocarmos com Liz Phair e Cat Power. Foi logo quando acabámos o soundcheck que a pessoa que tratava de nós na Geffen veio ao palco e deu-nos a notícia da morte dele. Eu fiquei completamente... Na altura foi difícil. Quando fizemos o concerto, as letras todas que eu estava a cantar estavam quase todas a ter ligação com o que se tinha passado. O significado mudou totalmente nesse dia».
Looking in The Shadows, lançado em 1996 pela Rough Trade em Inglaterra e pela Geffen nos Estados Unidos, foi a derradeira consequência do tardio reconhecimento do talento que originalmente tinha rendido um trio de álbuns hoje encarados como clássicos: The Raincoats (1979), Odyshape (1981) e Moving (1984) são autênticos hinos de liberdade, de afirmação de uma condição feminina progressista, de imaginação e superação, de quebra de barreiras e de preconceitos. Em 2009, Gina Birch confessava ao Guardian que depois de ter visto Yoko Ono em palco aos 76 anos se sentiu capaz de fazer isto «por mais 20 anos»: «damo-nos bem, somos mulheres, não era esperado que estivéssemos aqui, mas estamos. Quero ter mais 20 anos!». Verdade seja dita, as Raincoats continuam perfeitamente dentro do prazo.
blitz.sapo.pt
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